“detesto ficar sozinha porque quando sozinha eu me sinto com uns dez anos de idade. Tímida, insegura, sem jeito, perseguida por dúvidas de ter ou não ter permissão para fazer isso ou aquilo. Quando estou com outra pessoa, tomo emprestada a condição de adulto + auto confiança do outro” — pág 329 — anotação feita 26/03/1963.
A primeira vez
que li um diário... foi no século passado — como é delicioso dizer isso — pouco depois da morte de PR. Ele mantinha notas
sobre si em um velho moleskine... e, ao passear por seus dias — repletos de significados —, reencontrei a nós dois. Eu era chamada por ele de “menina Eliot” em referência à maneira
como nos conhecemos. Eu com um livro do poeta inglês em mãos e ele com seu
olhar curioso... sem compreender a cena.
Foi ele quem
me apresentou ao universo dos blogues — intuindo que seria um excelente aliado à minha
realidade literária —, e a muitos autores...
entre eles: Susan Sontag — “você precisa ler essa mulher” — foi o que me disse ao me presentear com o livro: “ao mesmo tempo”...
A “desconhecida”
Susan Sontag o fazia exclamar em voz alta, com um sorriso arteiro nos lábios: “que mulher!”. Embora se ressentisse
por ela não assumir sua homossexualidade e não se unir ao grupo que batalhava
por um lugar ao sol desde os anos sessenta. Mesmo assim ele a admirava e
acompanhava sua trajetória literária. E foi depois
de uma lenta caminhada entre as prateleiras da sua livraria favorita —
Community Bookstore, em NY —, colhendo livros e mais livros, que ele esbarrou no
exemplar “diários 1947-1963”. Eu o segurei em mãos com algum desconforto.
Sabia que não iria conseguir ler aquelas benditas páginas.
Um diário é
algo pessoal — era o que eu pensava naqueles dias. Sentia que ao
virar aquelas páginas estaria a invadir a vida de uma das intelectuais mais
importantes do século XX — e isso era
estranho e maravilhoso ao mesmo tempo. Levei o livro para
casa e o deixei na prateleira, em estado de abandono. Vez ou outra... passava
por ele. O sentia na ponta dos dedos —
toque rápido —, mas a sua condição permaneceu
inalterada durante muito tempo.
Depois de ler
o diário de PR — mudei de opinião. A esta altura Susan Sontag já
havia morrido em consequência de um câncer e sua condição era outra em minha
realidade. Sabia um punhado de coisas a respeito da autora. Tinha devorado a
maioria de seus livros... de romances à ensaios-críticas. Já tinha determinado,
com alguma satisfação, que Sontag era uma metralhadora giratória de opiniões.
Abri uma
garrafa de vinho e devorei o livro-diário. Os escritos de Sontag são ensaios
sobre si. É impossível não se encantar por essa espécie de retalhos que vai
formando a pessoa que foi. As dúvidas-certezas-tormentos-desconfortos e o elemento
principal: a construção de um pensamento.
É possível
percebê-la ainda jovem, vazia, em busca de tudo e nada. É notável a necessidade
de saber-conhecer e ir além de suas fronteiras pessoais. Dia após dia... nota
após nota... ela vai se reinventando a partir das leituras que fez, das pessoas
que conheceu e com quem travou excepcionais “batalhas”. Os lugares que
frequentou e suas opiniões definitivas sobre tudo e todos.
“Casei com Philip com plena consciência + medo da minha própria vontade apontada para a autodestrutividade”. — pág 87 — anotada em 03/01/1951.
Descobri —
ao virar das páginas —, uma mulher
comum... que desejava amar, ser amada... tinha verdadeiro pavor de estar
sozinha e tudo o que queria era escrever suas experiências-reais.
Sua escrita
não se deixa nortear pelo imaginário — nem mesmo para compor suas personagens. A ficção de
Susan sempre esbarrou em sua realidade. Nascia de seus sonhos, onde seus conflitos
pessoais se dissolviam, obrigando-a a qualquer coisa de compreensão. Enquanto
não solucionava seus mistérios... ela escrevia. Uma coisa parecia depender da
outra. Talvez por isso eu prefira seus ensaios-crônicas aos romances.
Os
diários de Susan Sontag estão divididos em três partes. O primeiro e o segundo
foram lançados no Brasil pela Companhia das letras. Foram organizados pelo
filho David Rieff... que fez cortes e recortes para preservar a mãe —
ou a si. Não sei se ela aprovaria tal cuidado. E também inseriu notas para
explicar anotações feitas — facilmente
descartadas por um leitor interessado em Susan.
“Pois depois de ser femme para Harriet e ‘machona’ para L, recordo que tive mais satisfação física em ser ‘passiva’, se bem que emocionalmente eu sou do tipo amante, não do tipo amada. Meu Deus, como tudo isso é absurdo!!!”. — pág 63 — anotada em 01/09/1949.
O que temos,
no entanto, é o bastante para compor um belo traço dessa mulher incrível, que
acusou a si pelos defeitos de caráter, enumerados por ela ao longo das páginas.
Que tentou amar — por considerar uma obrigação —, a mulher-mãe... que, no entanto, só conseguiu
odiar e desprezar. Que sobreviveu aos amores com quem viveu em estado
permanente de conflito. E foi mãe e esposa de alguém apenas para cumprir para
com as obrigações de mulher... e estar livre para viver sem amarras e freios
sociais, de acordo com suas vontades-desejos.
Mas, se você não
conhece Susan Sontag, recomendo que aterrisse o olhar em “Ao mesmo tempo” ou “Questão
de ênfase” para compreender a força avassaladora dessa
autora-crítica-ensaísta que cravou seu nome na história da literatura... antes
de mergulhar em seus diários e desmistificar o mito Sontag.