Eu costumo dizer que sou uma pessoa de re-leituras... porque alguns livros chegam-ficam em meu olhar e se esparramam por meu sentir-existir. De tempos em tempos acabo por revisitá-los, movida que sou por um impulso de emoções que se agigantam em minha anatomia.
O livro Carol — escrito por Patricia Highsmith nos anos sessenta — faz parte de minhas re-leituras... desde que o descobri na prateleira da biblioteca da universidade, no final do século passado... Ah, como eu adoro dizer-escrever isso.
Eu tinha pouco mais de dezessete anos, estava na faculdade e a história narrada em suas páginas ainda era uma novidade para mim — que vivia o descortinar das inocências e estava a aprender mundos-universos-pessoas.
Me lembro que me inquietei assim que travei contato com a figura loira que surgiu imensa em seu casaco escuro, a comprar bonecas para a filha em uma dessas lojas de departamento... que traçava falsos planos de carreiras para seus funcionários.
Era apenas o começo da trama... e eu já estava a pulsar realidades tão minhas, como se a história me mandasse vasculhar memórias... e eu me deixasse levar para dentro. Sempre tive o hábito de observar pessoas em seus instantes de vida — guardando gestos inteiros, movimentos menores, aprendendo vivências, traços — tragando-as como se fossem cigarro entre os dedos, levado à boca em meio a uma espécie de pausa obrigatória...
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Convertida em personagem... fui a jovem atendente, boquiaberta com a figura reta de gestos moderados, voz baixa e uma elegância natural. Mas, no momento seguinte, me vi em Carol... a olhar para trás, embasbacada com o que se desenhava em sua realidade: 'nunca mais travarei contato com essa mocinha encolhida-tímida-insegura que parece uma manequim de vitrine, vestido para ser observado-admirado.'
A trama parte deste precioso mote-momento — que a maioria de nós já vivenciou de diferentes maneiras — em que alguém nos salta aos olhos... ocupa cada um de nossos sentidos por um mísero segundo e, pronto: é necessário desvendar todos os mistérios que pousam na superfície da amalgama, enquanto a figura permanece emoldurada em nossos olhos embriagados — perto-e-longe tem uma mesma medida. Traçamos o que sabemos e o que não sabemos. Imaginamos muito-tudo... a partir do nada que temos-somos.
E isso é tudo. O que poderia ser para sempre, se transforma em nunca mais — se esvai... Eis a premissa que Highsmith usou em sua trama: argumento sincero-forte-maldito-poderoso que nos deixa à deriva... a pensar que um estranho-estranha poderia ser tudo, mas que é apenas nada.
Na trama de Carol, no entanto, a autora brinca com outras possibilidades e, como aranha, urde uma teia da qual nem Carol, nem tampouco Therese podem escapar. E de repente estão as duas... a bordo de uma mesma história-carro a fugir da vida-realidade-fadiga... como se inserissem uma espécie de pausa nos dramas reais para respirar e, em busca de ar, pegam a estrada.
E vamos nós com elas... apreciando desenhos de novos lugares-pessoas-cenários — coisas frágeis que podem facilmente ser deixadas para trás-esquecidas como se nem tivessem acontecido. Mas há também o contrário... os sentidos se alimentam de pequenos gestos, se acostumam com pequenas euforias e tudo passa a ter novos significados.
É preciso se lembrar de que quando se faz a mala e sai para uma viagem, só sabemos quem somos no dia da partida. E é justamente a pessoa nova que se apresenta ao final de cada página e nos conquista enquanto a leitura avança.
Sabemos as peças-personagens, mas elas vão se desfazendo a cada novo ponto no mapa e precisamos repensar o que são essas duas lindas mulheres.
A história foi escrita num tempo em que a homossexualidade — feminina e masculina — era um grande dilema. Nos Estados Unidos da América era tratada como crime-doença e as pessoas encaminhadas para tratamento com profissionais, que se consideravam aptos para agir na remoção de tal transtorno. As pessoas em geral viam como frivolidade... e consideravam resultado da pouca idade... uma transgressão que, no caso de mulheres, o casamento corrigiria.
É nesse mundo — não muito distante — que se desenha a realidade dessas duas mulheres que se apaixonam e vivem a incerteza de um futuro juntas. Eu já li várias vezes essa história e sei que ainda lerei muitas outras.