'como eu disse, hoje eu sei dar valor a isso. Na época, não. Mas nós não sabíamos de nada quando tínhamos vinte anos e éramos recém-casados. Só tínhamos o instinto e os padrões com que havíamos crescido'... trecho de ‘nossas noites’
...existem livros que não te alcançam no primeiro contato. A história fica em suspenso em suas linhas, quase fora de alcance — como se precisasse de um tempo a mais, antes de se oferecer aos olhos. Foi justamente o caso de 'nossas noites', de Kent Haruf... que chegou às minhas mãos na primeira metade desse ano.
Observei a capa, li a primeira página... e o deixei de lado, no alto da pilha que mantenho em minha 'mesa de trabalho' — que pouco uso, já que prefiro sair para as ruas, caminhar calçadas... e ocupar a mesa do canto, no 'café entre esquinas'.
Mas, depois de tantas dissonâncias no mundo real das coisas... e algumas leituras mais agudas — nesse ano, voltei a ler os meus autores russos —, precisava de algo menos denso para sentir que a vida é mais que meia dúzia de desaforos ditos de maneira sobressaltada, por essa gente tão disposta a apontar o dedo na direção da ferida alheia...
Aterrissei na história numa manhã de sábado, em busca de um pouco mais 'de alma-calma-cuore', e me deixei seduzir pelos personagens principais da trama, que são viúvos... moram na mesma rua de uma pequena cidade — e poderiam ser meus vizinhos de porta, com quem pouco ou nenhum contato eu tenho...
Addie encontra em Louis uma saída para a sua solidão diária... e, a cada encontro noturno — uma espécie de fuga de suas vidas vazias e frias —, conquistam algo que muitas pessoas levam uma vida inteira para encontrar... isso quando encontram.
É através de uma taça de vinho — para ela — e uma garrafa de cerveja — para ele — que vamos sabendo o passado dos personagens. Ela se casou depois de engravidar e ele se envolveu com outra mulher quando o casamento atravessou problemas.
Participei — ao virar das páginas — dos diálogos comuns, como os que tenho com o meu menino, durante as refeições ou no meio do dia — de chuva —, quando nos sentamos para olhar nos olhos, encaixar as mãos... nos saber sem julgamentos-conceitos, apenas pelo prazer de ouvir-sentir-conhecer.
No livro — como na realidade —, não demorou para as personagens enfrentarem obstáculos e precisarem encontrar meios de sobreviver aos inconvenientes comentários de pessoas, incomodadas com a alegria de 'dois velhos' que se permitiram não pensar no fim... e apenas aproveitar o que é vida.
A essa altura da leitura... percebi que o livro era mais um reflexo da realidade — da qual pretendia fugir — e me e aborreci com a reação dos demais personagens... vizinhos, amigos e filhos, meros estranhos, incomodados com o que não tinham. Fui reconhecendo-os — um a um — nesse cotidiano-contemporâneo-nervoso, em que todo mundo se sente à vontade para dizer como o outro deve administrar a própria vida.
Ficou difícil virar a página e continuar a leitura, mas não desisti do livro — apenas fiz uma pausa para respirar o dia, as horas e saber notícias de uma amiga em viagem a Portugal... a ouvi dizer, num sem-voz — 'não nasci para ser sozinha' — e, como de costume, fiquei dentro da frase por alguns instantes, a sorver a combinação de palavras como se fosse um copo de latte.
Me lembrei de Baudelaire, que foi o primeiro a me aconselhar, através de seus versos: 'é preciso entender a solidão'... e depois fui me aconchegar em uma tela de Hopper, que me mostrou, através de seus desenhos... 'que somos pequenas ilhas'.
Voltei ao livro, aos personagens e passei a torcer para que a felicidade fosse possível — e não apenas um maldito produto disponível para compra numa prateleira de supermercado, onde se paga mais pela embalagem que pelo conteúdo.
Eu nunca esperei por pessoas em meu mundo-realidade — mas elas foram chegando, uma a uma... algumas escolheram permanecer, enquanto outras preferiram acenar e não mais voltar... houve quem voltasse tempos depois.
Eu confesso que nunca me importei com chegadas e partidas, por gostar do silêncio e da quietude de meu avesso e dos espaços e suas ausências.
'Nossas noites'... é o diálogo, o partilhar das vivências, a liberdade de existir sem se importar com o olhar alheio, apenas se preocupar em se sentir bem e aproveitar a vida e suas muitas variáveis — conscientes de que a gente envelhece todos os dias, mas só sente os efeitos na pele se nada fazemos com a vida que nos é dada no instante do nascimento.