RESENHA | Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra de Mia Couto
“— A gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que nos entra, pulmões adentro. A pessoa morre é engasgada em nuvem.”
Ainda me lembro da
correspondência que pousou em minhas mãos — envelope-selos-papel-e-o-delicioso-aroma-de-oceanos-fatiado-ao-meio
—, e trouxe Mia Couto, um ilustre desconhecido para mim à ocasião.
Eu comecei a trocar
correspondências na juventude... adorava voltar para casa e encontrar os
envelopes à minha espera. Preparava uma xícara de chá, me acomodava na poltrona
e degustava os horizontes alheios — deliciosamente descritos em linhas em
pares.
A narrativa sobre mundos
encontrou eco na narrativa exposta por Mia Couto, em seu livro 'um
rio chamado tempo, uma casa chamada terra'... até aquele momento, nada
conhecia do autor-livro, e para sabê-lo, corri à Livraria Cultura
— comecei ali mesmo a devorar as linhas, devidamente acomodada em um
daqueles puffs, deixados lá para esse fim...
A cada página
ultrapassada, a certeza de que Mia Couto é um contador de histórias crescia em
meu íntimo.
...'um rio chamado
tempo, uma casa chamada terra' nos
brinda com a história de Marianinho, um jovem que regressa à terra natal e às
suas raízes, para realizar o cerimonial fúnebre do patriarca da família, seu
avô... e acaba por resgatar a si, através das lembranças e revelações desse
acontecimento.
O tempo é o elemento
masculino da história... a força que os impulsiona e molda. A maneira como as
nossas ambições particulares nos afastam de si e da casa-corpo... o elemento
feminino da trama, que é o lugar para onde se volta-regressa, e onde tudo se
preserva. O tempo escorre pelos vãos, mas a memória está sempre disposta a te
resgatar-salvar.
Eu me senti como o
personagem... e fui guiada pelos fios da trama nesse regresso à minha infância
e a tudo o que aprendi por lá. A gente é como o rio... está sempre a caminho do
oceano, e cada vez mais distante de casa-corpo-alma. Acabamos perdidos, mas vez
ou outra surge algo — um aroma, uma cor, um som —, que faz emergir das
profundezas da pele uma saudade imensa-intensa, disposta a nos salvar de nós
mesmos — do que nos tornamos nessa trajetória de enganos —, mas nem sempre
nos rendemos... e acabamos indo em frente, seguindo o curso-do-rio-tempo, até que
seja tarde demais.
Eu voltei para casa um
sem-fim de vezes — guiada pela voz de mio nono, que era um contador de
histórias, mas não do tipo que escreve, como Mia Couto. Ao ler a narrativa do
livro, foi como caminhar ao seu lado, encaixando meu passo ao dele mais uma
vez: 'acordo antes de ser manhã. Uma poeira — será a
luz? — infiltra-se para além dos cortinados. Renasce em mim
essa estranha sensação que me acontece só em Luar-do-Chão: o ar é uma pele,
feita de poros por onde escoa a luz, gota por gota, como um suor solar'.
Quando menina, eu
viajava para a terra do nono nas férias de verão... o ouvia contar suas
histórias de menino, sustentadas em folclores regionais. Sempre me
impressionava os detalhes narrados e a viagem que eu fazia, amparada por sua voz
grave-de-homem-do-campo-da-terra...era tudo tão
mágico-incrível-quase-inacreditável para alguém que vinha de longe, da cidade
grande, onde as coisas são pautadas por símbolos e significados.
Mio nono conhecia as
magias do lugar onde tinha nascido... sabia ouvir a terra, interpretar as fases
lunares, os ventos nas folhas. Tudo era um diálogo entre o
homem-terra-céu-lugar. Ele conversava com os animais, com as árvores, com os
espíritos... era sempre o último a tomar seu lugar na ponta da mesa e, de lá, admirava
sua vida-história. Ele adorava a mesa-casa cheia aos domingos. Gostava de se
ver rodeado por netos e saber de nossas vivências longe dali. Certa vez, eu o
vi com os olhos cheios na véspera de nossa partida... foi um ano difícil para
todos nós, o seguinte àquele. Nunca me esqueci da notícia que nos afastou para
sempre de casa: 'sua avó morreu durante uma tempestade’, e como
ele costumava dizer que eu tinha nascido entre trovões, me calou por
semanas.
O livro de Mia Couto não
apenas me apresentou a uma África inédita em minha pele... uma cidade —
Luar-do-Chão —, com pessoas e suas vidas pequenas-menores, pautadas por coisas
esquecidas-abandonadas por nós e toda essa modernidade urbana tão 'necessária',
como fez o favor de me devolver a mim e saber — como o personagem
Marianinho —, de que matéria sou feita.
Recomendo a leitura, mas
antes de folhear essas páginas, pense bem se está disposto a regressar, seja lá
para onde é que você foi nesses anos de vida.
Boa leitura-viagem!
4 comentários
Antes de mais nada, preciso enaltecer a sua resenha. Ficou tão poética, fez com que eu me identificasse e realmente com várias coisas que estão escritas. Também gosto de enviar cartas, olhar a caixa do correio e ver que alguém se dispôs a me mandar algo. Livro também são sempre encantadores :)
ResponderExcluirNão conhecia o livro que você resenhou, mas logo pelo título eu já fiquei interessada. Essas histórias mais profundas sempre me chamam a atenção! <3
Obrigada Lu. A Lunna é uma excelente escritora e ela tem esse "poder" mesmo rsrs.
Excluirbeijos e volte sempre
Ah, comecei a ler este post pensando que conhecia esta escrita bonita...Lunna arrasa na prosa poética!
ResponderExcluirEu também amei este livro e vou ali, preparar uma xícara de chá para ler os outros posts deste belo blog
Bjs, meninas
Oi Claudia, a Lunna é ótima né? Adoro seus textos-resenhas também. Me convida para estar neste delicioso chá.
Excluirbeijos
Obrigada por comentar.
Responderei em breve, por isso ative as notificações.