RESENHA | Nossas noites de Kent Haruf

by - 22 novembro

 Nossas noites de Kent Haruf

'como eu disse, hoje eu sei dar valor a isso. Na época, não. Mas nós não sabíamos de nada quando tínhamos vinte anos e éramos recém-casados. Só tínhamos o instinto e os padrões com que havíamos crescido'... trecho de ‘nossas noites’


...existem livros que não te alcançam no primeiro contato. A história fica em suspenso em suas linhas, quase fora de alcance — como se precisasse de um tempo a mais, antes de se oferecer aos olhos. Foi justamente o caso de 'nossas noites', de Kent Haruf... que chegou às minhas mãos na primeira metade desse ano.

Observei a capa, li a primeira página... e o deixei de lado, no alto da pilha que mantenho em minha 'mesa de trabalho' — que pouco uso, já que prefiro sair para as ruas, caminhar calçadas... e ocupar a mesa do canto, no 'café entre esquinas'.

Mas, depois de tantas dissonâncias no mundo real das coisas... e algumas leituras mais agudas — nesse ano, voltei a ler os meus autores russos —, precisava de algo menos denso para sentir que a vida é mais que meia dúzia de desaforos ditos de maneira sobressaltada, por essa gente tão disposta a apontar o dedo na direção da ferida alheia...

Aterrissei na história numa manhã de sábado, em busca de um pouco mais 'de alma-calma-cuore', e me deixei seduzir pelos personagens principais da trama, que são viúvos... moram na mesma rua de uma pequena cidade — e poderiam ser meus vizinhos de porta, com quem pouco ou nenhum contato eu tenho...

Addie encontra em Louis uma saída para a sua solidão diária... e, a cada encontro noturno — uma espécie de fuga de suas vidas vazias e frias —, conquistam algo que muitas pessoas levam uma vida inteira para encontrar... isso quando encontram.

É através de uma taça de vinho — para ela — e uma garrafa de cerveja — para ele — que vamos sabendo o passado dos personagens. Ela se casou depois de engravidar e ele se envolveu com outra mulher quando o casamento atravessou problemas.

Participei — ao virar das páginas — dos diálogos comuns, como os que tenho com o meu menino, durante as refeições ou no meio do dia — de chuva —, quando nos sentamos para olhar nos olhos, encaixar as mãos... nos saber sem julgamentos-conceitos, apenas pelo prazer de ouvir-sentir-conhecer.

No livro — como na realidade —, não demorou para as personagens enfrentarem obstáculos e precisarem encontrar meios de sobreviver aos inconvenientes comentários de pessoas, incomodadas com a alegria de 'dois velhos' que se permitiram não pensar no fim... e apenas aproveitar o que é vida.

A essa altura da leitura... percebi que o livro era mais um reflexo da realidade — da qual pretendia fugir — e me e aborreci com a reação dos demais personagens... vizinhos, amigos e filhos, meros estranhos, incomodados com o que não tinham. Fui reconhecendo-os — um a um — nesse cotidiano-contemporâneo-nervoso, em que todo mundo se sente à vontade para dizer como o outro deve administrar a própria vida.

Ficou difícil virar a página e continuar a leitura, mas não desisti do livro — apenas fiz uma pausa para respirar o dia, as horas e saber notícias de uma amiga em viagem a Portugal... a ouvi dizer, num sem-voz — 'não nasci para ser sozinha' — e, como de costume, fiquei dentro da frase por alguns instantes, a sorver a combinação de palavras como se fosse um copo de latte.

Me lembrei de Baudelaire, que foi o primeiro a me aconselhar, através de seus versos: 'é preciso entender a solidão'... e depois fui me aconchegar em uma tela de Hopper, que me mostrou, através de seus desenhos... 'que somos pequenas ilhas'.

Voltei ao livro, aos personagens e passei a torcer para que a felicidade fosse possível — e não apenas um maldito produto disponível para compra numa prateleira de supermercado, onde se paga mais pela embalagem que pelo conteúdo.

Eu nunca esperei por pessoas em meu mundo-realidade — mas elas foram chegando, uma a uma... algumas escolheram permanecer, enquanto outras preferiram acenar e não mais voltar... houve quem voltasse tempos depois.

Eu confesso que nunca me importei com chegadas e partidas, por gostar do silêncio e da quietude de meu avesso e dos espaços e suas ausências.

'Nossas noites'... é o diálogo, o partilhar das vivências, a liberdade de existir sem se importar com o olhar alheio, apenas se preocupar em se sentir bem e aproveitar a vida e suas muitas variáveis — conscientes de que a gente envelhece todos os dias, mas só sente os efeitos na pele se nada fazemos com a vida que nos é dada no instante do nascimento.

Nossas Noites  — Kent Haruf
Companhia das Letras / 2017


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10 comentários

  1. Olá!
    Adorei seu texto e forma descritiva. Faz a gente viajar, ilustrar com a nossa as situações que você narrou e assim podemos nos aproximar das sensações que estão compartilhadas nas palavras do texto. Ele me lembra e muito um diário etnográfica dos antropólogos.
    Parabéns

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    1. Agradeço Rodrigo!
      A resenha feita por minha amiga 'Lunna' é sempre espetacular.
      Todos os créditos são para ela ♥

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  2. Seu texto além de uma resenha é uma crônica. Uma crônica bem escrita, com direito à desistência, encontro da vontade perdida e uma retomada do objetivo, terminar o livro nesse caso.
    Adorei!

    Gosto como você usa os hífens para formar novas palavras. Tento fazer isso também às vezes. Em alguns casos eu acerto. Em outros eu erro. Você usa muito bem. Parabéns.

    Um abraço.

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    1. OLÁ WILLIAN, realmente, a resenha feita pela colaborado do blog - Lunna Guedes é maravilhosa. Eu mesmo não conseguiria tamanha eficiência rs'
      Fico feliz que gostou! ♥

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  3. Ualll que resenha perfeita. Deu para sentir os seus sentimentos em relação a livro. Fiquei super interessada. Ainda não o conhecia. Já anotei aqui

    Beijos

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  4. Olá!!
    Assim que iniciei a leitura da resenha, pensei no filme. Não li o livro, então não posso fazer comparações. Quanto ao filme, gostei tanto que o recomendei à minha irmã e sobrinhas que são viúvas.
    Bjs!

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    1. Leia o livro, se gostou do filme e gostou da nossa resenha com certeza você vai amar a leitura ♥
      beijos

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