RESENHA | Linha M de Patti Smith

by - 13 dezembro

Linha M de Patti Smith

Quando me deparei com o livro Linha M, de Patti Smith, na Livraria Cultura, não liguei o nome da autora à rockeira do álbum Horses, de 1975, nem à voz rouca por trás de 'because the night' e 'smells like a teen spirit' — minhas favoritas. Sou péssima com nomes e títulos e eles simplesmente me escapam. Confesso que fui seduzida pela capa que, curiosamente, me remeteu a uma fotografia de Mapplethorpe... fotógrafo-amigo-cúmplice de Patti... esse, sim, eu reconheço em qualquer canto-lugar.

Sem sabê-la autora... li Linha M entre goles de latte e fui sendo tragada para dentro de uma conhecida realidade. Me vi em seus desejos — de ter um café... encontrar um lugar e cuidar dele para ser o que nunca foi... em seus “entulhos de escritor” acumulados numa prateleira: lapiseiras sem grafite, uma velha máquina de escrever, dúzias de papéis e centenas de rascunhos... em seus gestos humanos-bobos de se aborrecer ao chegar ao seu café-particular — o Ino, em Nova Iorque — e... encontrar sua mesa de sempre ocupada por um estranho, e rodar perdida pelo lugar até poder tomar posse do que é seu.

Após terminar a primeira leitura... fiquei com a sensação de que esbarraria em Patti a qualquer momento, em minhas andanças por Moema, ou ao embarcar em um ônibus com destino à Avenida Paulista e, mesmo consciente de que os caminhos da autora são outros, não consegui evitar a sensação de que estava a percorrer o mapa de sua vida... a bordo de qualquer pessoa-personagem em que esbarrava ao atravessar a rua, ao dobrar uma esquina... com o passo despreocupado-largo e a cabeça povoada por longínquos vôos.

Foram muitas as vezes em que ocupei a mesa do meu café entre esquinas e fiquei a observar pessoas, colher restos de diálogos. Conheci rostos-personagens, fiz uma pausa em meus escritos envenenados para ler as páginas de um livro qualquer, entre um gole ou outro de latte. Li capítulos inteiros escritos por Patti ou por mim... riscando o que não me servia.

Percebi que tenho a mesma natureza de Patti... gosto do meu canto, do meu sossego-silêncio de páginas em movimento. Somos a figura-pouco-humana que ocupa sempre a mesma mesa, faz sempre o mesmo pedido e se esparrama um pouco mais a cada gole: livros, cadernos, um copo branco de latte bem feito, o notebook. Não sei como as pessoas me vêem e nem tenho curiosidade a respeito... mas, a minha Patti é a mulher de olhos tristes, pesadas olheiras, movimentos poucos e que a tudo observa-aprende-e-escreve... versos-lembranças-notas-coisas-suas que vão, aos poucos, sujando os guardanapos do lugar.

Ela parte de um Norte que é ela mesma, mas recusa o destino que oferece a si e nos avisa: não é nada fácil escrever sobre o nada”. Mas, o aviso que chega até nós tem outro endereço... é uma espécie de nota mental deixada ali para seus escritos-futuros, como se soubesse que iria adquirir consciência — em algum momento — de que não seria fácil se dedicar novamente a um livro, onde iria se permitir ser mar.

O livro inteiro é um mapa de vivências... e confesso que entrelacei minhas memórias em cada linha de vida da poeta-mulher — misturando-as, como se eu estivesse a dialogar com ela — coisas minhas-secretas-silenciosas — estabelecendo uma espécie de troca.

Me vi arrumando a minha mesa, escolhendo as canetas-canecas-tipo-de-papel... e as notas mentais esquecidas em livros-cadernos-cantos. Me despedi de pessoas queridas, dei um passo atrás para enxergar tudo por outro ângulo.

...e esqueci rascunhos meus — escritos em pedaços de papel — dentro do livro, para um reencontro futuro. E, de repente, a sensação era a de embarcar num comboio e, depois de estar confortavelmente acomodada em minha poltrona, com a janela aberta para futuras-paisagens, sentir o lugar ao lado ser ocupado por essa persona-estranha-e-conhecida, que tem em mãos um velho moleskine... que eu espio de canto de olho — percebendo, ao virar das páginas, pequenos detalhes: a caligrafia errática, os recortes de papel soltos entre páginas, fotografias presas por um pedaço de fita crepe...

Iniciamos, sem perceber, esse diálogo de vivências — e a viagem passa sem que a gente perceba, e o fim do livro-viagem chega. Me sinto à deriva, a rever as estações, os lugares, o livro a mim e à persona em estado de quase-partida.


Fecho o livro, desembarco, mas permaneço a bordo... 



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“uma súbita lufada de vento sacode os galhos das árvores, espalhando seu redemoinho de folhas que refletem a luminosidade de forma fantasmagórica. Folhas como vogais, sussurros de palavras como um alento livre. Folhas são vogais. Eu as espalho na esperança de encontrar as combinações que procuro. A linguagem dos deuses menores. Mas e o próprio Deus? Qual é a sua linguagem? Qual é o seu prazer? Será que ele mistura versos de Wordsworth, as frases musicais de Mendelssohn e vivencia a natureza como os gênios a concebem? Sobe a cortina. A ópera humana se desdobra. E na caixa reservada para os reis, mais trono que caixa, está o Todo-Poderoso”. Pág 132

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Linha M
Patti Smith
Tradução Claudio Carina
Editora Companhia das Letras


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22 comentários

  1. Oi,
    meu dels como eu quero ler esse livro! Quando soube dele, não conseguia acha-lo para comprar. Gosto da Patti e ver que ela ousou em escrever um livro sempre foi algo que me deixou animada. Esse lance da pessoa escrever e conversar com o leitor é algo que amo e ela fez isso pelo que notei!!!!

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  2. Nunca ouvi falar desse livro, ótima resenha, muito sucesso❤️

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  3. olá tudo bem ? Ainda não conhecia o livro da Patti , o linha M parece um livroo interessante com umma temática um tanto curiosa , guardarei a dica. bjsss

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  4. Olá, adorei sua resenha, ela transmite bem o que você sentiu durante a leitura do livro, e dá pra perceber que você tem um apego sentimental por ele..

    Bom trabalho!

    Ritch, Conta-se um Livro

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    1. Muito Obrigada pelo feedback Ritch é isso que a Lunna transpassa através de suas palavras ♥

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  5. Oi Lunna! Nossa, não sabia que a Patti tinha escrito o livro. E nk seu texto deu pra perceber todo sentimento e envolvimento que você teve com a leitura. Senti seu nível de indentificação e carinho.
    Acho que isso faz com que a leitura valha mais ainda, não é?! Poder nos misturar com a escrita, trazer partes para nossa vida.
    Adorei seu texto. Beijos

    https://almde50tons.wordpress.com

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  6. "mas, a minha Patti é a mulher de olhos tristes, pesadas olheiras, movimentos poucos e que a tudo observa-aprende-e-escreve... versos-lembranças-notas-coisas-suas que vão" Super me identifiquei com esse trecho. E gente, como suas palavras se entrelaçam com a história do livro. Já quero demais!!

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    1. Obrigada Simeia, sou suspeita pra falar sobre a colaboradora do blog mas ela é genial ♥

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  7. Oi Lunna, tudo bem?

    Não conhecia o livro e devo confessar que também não conhecia a autora. Pela sua narrativa fiquei encantada pelo que vi, pois sua personagem se assemelha a muitas pessoas, tendo características "normais". Parece ser aquela leitura que sentimos na alma e na qual embarcamos de cabeça. Já quero ler, vai para a lista!

    Beijos!

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  8. Oi, Luna! Q maneira gostosa de escrever. Tenho leve impressão de que já li outra coisa sua, ou será que me senti tão à vontade que pensei isso?

    Eu não conhecia esse livro, confesso que também não sei quem é Patti - irei procurar depois que fechar sua janela -, mas gostei muita da menira como vc escreve, fazendo uma história por cima da própria história, destacando as qualidades da personagem , ao mesmo tempo em que mostra também suas próprias características.

    Bjão.
    Diego, Blog Vida & Letras
    Também estou no IG: @vidaeletras
    www.blogvidaeletras.blogspot.com

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  9. Oiie,
    Você fez uma ótima resenha, eu também ainda não li o livro nem a autora mas obviamente o livro me chamou bem a atenção não só por você ter resenhado tão bem mas também pelo próprio livro, não sei se o vi em algum lugar ou se já me recomendaram antes mas eu gostei de verdade :)

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  10. Olá
    Acho bem interessante sua forma de abordar o livro, mostrando suas vivências e como isso te conecta com o livro, me deixou até curiosa com o livro que de outra forma deixaria passar.

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  11. Menina, acho que foi uma das melhores resenhas que eu já li na minha vida. Parabéns mesmo! O seu texto passou uma sensação tão boa ao ler. Definitivamente voltarei mais vezes aqui. Sobre o livro, impossivel não ficar com vontade de lê-lo depois dessa resenha.

    Abraços
    desconstruindooverbo.com.br

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    1. Nossa, que bom ler isto! Obrigada pelo feedback Erick, volte sempre por aqui ♥

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